terça-feira, 29 de julho de 2014

Canção para Lulu


Quando nosso Cometa Halley cruzou o céu, eu estava muito longe. Era madrugada e eu acordei, e no meu peito eu já sabia o porquê. Senti que ela tinha ido me visitar antes de seguir. Não sou muito de “rezas formais”, mas o Pai Nosso e a Ave Maria vieram em minha mente, do jeito que eu sei que ela gostaria que viesse... Mas me faltou a coragem de olhar o telefone celular para confirmar o que eu já sabia: Lulu, como muito bem definiu meu tio Babá, era agora uma estrela. A nossa estrela Lulu.
            Por mais que acreditemos no divino e que procuremos ser racionais, e sabermos que é melhor partir do que ficar sofrendo, uma separação é sempre muito dolorosa, é como se perdêssemos parte de nós mesmos. Cruzei um oceano de lágrimas, literalmente, e me apeguei num ensinamento da minha outra avó: “a dor nunca vai embora, a gente só aprende a conviver com ela”.
Eu gostaria de ter palavras para confortar a todos neste momento, mas eu não saberia nem como começar quando eu mesma ainda não descobri como lidar com tudo isso. No entanto, eu preciso dividir um pouquinho do que, acredito eu, pude aprender por ter tido a felicidade de descender desta pequena grande mulher.
Minha avó me ensinou que devemos nos aceitar – e ter orgulho de sermos – do jeito que somos. Na minha infância, com a curiosidade natural de todos os pequenos, a indaguei sobre seus pés e mãos “diferentes”, e ela me respondeu muito naturalmente que não sabia exatamente o porquê de ter vindo ao mundo assim, mas que nunca teve vergonha de ser do jeito que era. Lembro como se fosse hoje de suas palavras: “quando eu percebia que estavam olhando muito para mim, tirava logo os sapatos e colocava o pé em cima da mesa, para olharem bem”. Aprendi aí que só nos atinge o que permitimos nos atingir.
Minha avó foi uma mulher de superações. Superou seus dedos diferentes; superou uma paralisia infantil; superou a proibição de seus pais em relação à ideia de que ela se casasse e conseguiu o que queria: começar a sua própria família, com meu avô. Ela também se superou quando prematuramente perdeu o seu amor e, ainda jovem, ficou viúva com sete filhos.
Minha avó me ensinou que devemos lutar, sem nunca desistir, pelos nossos sonhos, sejam eles quais forem. Minha avó ensinou que devemos ter personalidade, mas também me ensinou que não devemos confundi-la com agressividade, e me confidenciou que ela, que teve uma língua muito ágil e ferina na juventude, depois de mais velha percebeu que não era vitória nenhuma ganhar uma discursão quando machucamos alguém quem amamos.
Minha avó não só me ensinou que devemos amar uns aos outros, como Deus nos ensinou, mas também me ensinou o que é sentir amada, quando me contou que o primeiro almoço que fez, depois de casada, errou a mão no cozimento e a carne ficou dura, e meu avô prontamente decretou que a comida estava ótima, a mandíbulas é que estavam muito fracas.
Minha avó tinha orgulho de mim, e sempre que lia ou via alguma coisa que pudesse me interessar, me ligava para me contar e dizia: “minha filha, tu ainda vais ser muito famosa, se Deus e Nossa Senhora permitirem”. Aliás, ao contrário da postura de preocupações que geralmente os mais velhos têm, minha avó apoiava imensamente eu e meus primos que, em vez de procurarmos a estabilidade financeira, fomos atrás de nossos sonhos musicais e teatrais, e enchia a boca para nos denominar “os artistas da Lulu”.
Minha avó só me viu cantar num palco uma vez, um mês antes de partir, e mesmo que essa minha ida a Santarém, completamente improvável e de última hora, tenha sido apenas uma coincidência, eu nunca vou deixar de acreditar que foi um presente de Deus para que eu pudesse me despedir e ficar na memória com a imagem dela feliz, boiando no rio, brincando conosco, netos e bisnetos, como se ela fosse a criança que nunca deixou de ser.
Minha avó me ensinou que, quem come tudo num dia, no outro assovia, e que quem come tudo numa hora, na outra chora. Mas quando cresci e perdi meu apreço pelos doces, ela sempre me dizia, quando nos falávamos nos dias de comemorações: “ não te preocupa que a formiguinha vai comer os docinhos por mim e por ti”.
Minha avó me chamava de “grandalhona”, e nunca perdia a oportunidade de brincar com a nossa diferença de altura, pedindo para eu me abaixar para ficar ao seu lado. Minha avó, de uns tempos pra cá, vivia me perguntando quando é que eu iria casar com um marido bem bacana, que tivesse pelo menos 1,90m de altura, assim, pra combinar comigo, e dar a ela uns bisnetos grandalhõezinhos, e meu coração fica partido em mil pedaços por saber que, quando esse dia chegar, ela não estará lá em corpo, para nos dar a sua benção, e que os filhos que eventualmente vierem não ganharão, ao nascer, uma rede feita por ela, para embalar seus sonhos.
Meu irmão me disse que não conseguia imaginar que nunca mais ouviria a sua voz o chamando de “meu garoto”, e meu coração se parte em mais um milhão de pedaços por, neste momento tão difícil, nem eu e nem ele estarmos ao lado do nosso pai. Por outro lado, sinto um conforto enorme por saber que as últimas palavras dela, para ele, foram: “meu filho, eu te amo muito”.
É isso. O corpo vai e tudo o que fica é o amor. E, como diz a música, “ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio”. Gosto de pensar que o vovô Cezar colocou sua roupa de escutar ópera para, depois de 40 anos, recebe-la em seus braços, e que os dois estão juntinhos, namorando, saudáveis e felizes, fazendo cosquinhas no nosso anjinho Riccardo, olhando por nós na eternidade do pôr-do-sol mais lindo do mundo, e com a certeza de que aqui na Terra viverão nas canções e em todo tipo de coisas belas feitas por nós e pelos que estão por vir, frutos de tanto amor.


Com amor e saudade, da sua “grandalhona”, Gabi.